TESTEMUNHO VOCACIONAL
Revista Voz Amiga | Volume 32 | Nº 1 | Ano 2022
Brasil: Terra de Santa Cruz
Na madrugada do dia 19 de dezembro, como de costume nos 12 dias de viagem no navio, subi à proa, resignado a ver sempre o mesmo espetáculo: céu no alto e água em baixo, mar e mar sem fim. Com surpresa, vi na frente uma língua de terra montanhosa, coberta de matas, interrompida no meio por uma abertura; o navio entrava por Iá!
“Chegamos ao Brasil? perguntei a mim mesmo; Onde?”
Ia aparecendo uma grande baía, circundada de montes, com casas e prédios ao longo da enseada. “Onde estamos?” De repente notei um monte agudo com uma estátua colossal de braços abertos. Fixei o olhar indagador. Lembrei-me do livro de geografia do curso ginasial de trinta anos antes; reproduzia aquela imagem e explicava: “Em 1929 foi construída no Rio de Janeiro uma estátua colossal do Cristo Redentor; está virada para a entrada da baía e tem os braços abertos na atitude de acolher os que chegam ao novo Continente”.
Senti-me comovido: O Cristo acolhia-me de braços abertos no Brasil!
Paramos no Rio um dia, e na noite seguinte o navio rumou para Santos. Na madrugada seguinte estava de novo na proa a ver as novidades, o navio entrava no porto de Santos, passando frente a um desfiladeiro de prédios magníficos: ‘Esta cidade deve ser muito rica!” pensei.
Pessoas amigas estavam nos esperando; depois dos abraços e beijos, nos ajudaram a nos libertar da alfândega e carregar tudo numa kombi, rumando para S. Paulo. Passamos pelas ruas ensolaradas da cidade: notei os buracos e a sujeira, as casas todas de um só pavimento, bastante velhas e mal cidade não é tão rica como parecia”, pensei. Mas, depois que saímos, a estrada passou por uma planície meio pantanosa, e vi dentro dela barracos e barracos, um apertando outro, e garotos descalços e sem camisas pelas ruelas de terra… “Neste País deve haver três classes de pessoas, pensei: uma ultra rica, uma meio remediada e uma de miseráveis”.
Vinte e cinco anos de Brasil não desmentiram aquela primeira impressão!
Estava caindo a noite e não deu para ver nada, a não ser os faróis dos carros que cruzavam conosco. Deu para entender que a rua era muito movimentada também de noite. Chegamos a S. Paulo, na Penha, onde nos hospedamos. Mas não conseguia dormir. Os mosquitos eram demais! Por fim decidi deixar a luz acesa e aí os mosquitos ficaram quietos.
Em São Paulo: os três primeiros anos.
Nos dias seguintes começamos a nos mover pela cidade. A primeira impressão foi de imensidão: a gente pegava um ônibus, viajava duas-três horas e via sempre o mesmo espetáculo: ruas e casas, num sobe e desce que não acabava nunca! “Roma foi construída sobre sete oteiros; mas parece que S. Paulo foi construída sobre setecentos!” exclamava. E nas ruas do centro multidões de pessoas se apertando, andando apressadamente, ou esperando a condução: “Quanta gente, meu Deus! Nós devíamos pregar o Evangelho a todos eles?”
Sentíamo-nos como formiguinhas! Era gente de toda cor, raça, origem. E avizinhávamos padres italianos, holandeses, portugueses, espanhóis, padres vindos do Norte do Brasil, do Sul, do interior. “Que diocese é essa? Como pode haver colaboração pastoral com tanta diversidade de clero?” Depois observei melhor: havia mais respeito e colaboração do que na minha terra; certamente menos fofocas. E acabei achando a situação apropriada: “Para um povo cosmopolita precisa mesmo um clero cosmopolita.”
Algumas semanas depois fomos encarregados de ajudar na Catedral da Sé. Saíamos da Penha de madrugada para chegar às 7 horas. Passávamos frente a um posto de saúde e toda madrugada havia uma longa fila de pessoas esperando.” Há quanto tempo estarão aqui? onde dormiram?” E havia gente dormindo na calcada: Padre André não escondia a emoção: “Coitados, dormem aqui”! Uma manhã vi na calçada pés de crianças saírem debaixo de um papelão do tamanho de uma porta. Parei: contei cinco pares de pezinhos de crianças que deviam ter de três a 15 anos. “Dormem aqui debaixo de um papelão! Serão irmãos? Estarão sem pais?”
Enquanto estas visões davam para entender a multidão dos problemas sociais, procurávamos analisar a situação pastoral. Na Penha, onde moramos primeiro, recebemos uma impressão empolgante: era uma equipe de padres diocesanos, com iniciativas pastorais intensas, a igreja sempre superlotada e uma liturgia bem participada. Mas, na Catedral parecia um outro mundo. Celebrava-se ainda de costas contra o povo. Missas de sétimo dia, encobertas pelo som do órgão do começo ao fim! Em compensação, havia muitas confissões. “Pelo menos o povo se confessa e procura direção espiritual!”.
Mas, veio o dia 25 de janeiro, aniversário da fundação da cidade;
jornais evidenciavam o progresso e indicavam as celebrações cívicas. Mas na catedral parecia um dia qualquer. Rezei aborrecido a costumeira Missa de sétimo dia coberta pelo órgão de ponta a ponta e, depois de algumas confissões, sai à praça em busca do monumento a Padre Anchieta. Encontrei-o no fundo da praça. Avizinhando-me a ele, ouvi cantos religiosos: “Como é? Está havendo a celebração aqui e eu não estou sabendo?” Observei bem. Era um grande grupo de pessoas em círculo frente ao monumento, de costas contra ele, cantando e rezando. Eram crentes! Fiquei tão chocado, que voltei às pressas à Catedral quase chorando. Aquela imagem me pareceu um retrato da situação religiosa do Brasil: de um lado uma igreja católica parada, de outro os crentes desdobrando-se nas manifestações!
Na medida em que procurávamos conhecer, éramos conhecidos e convidados para ministérios específicos. P. André foi nomeado diretor espiritual do seminário menor de S. Roque, foi conhecendo bastante institutos religiosos de irmãs, nos quais pregava retiros e confessava. Eu comecei a escrever no semanário diocesano “O S. Paulo”, assumindo depois a rubrica: “A palavra do Papa”. Frequentava as reuniões do clero em algumas regiões da Diocese, e fui encarregado de coordenar o grupo da Região central. Nos domingos ajudávamos os padres da periferia com Missas e confissões.
A proposta inicial era de fixar-se na Igreja da Boa Morte, vizinha à praça da Sé. Mas quem mandava lá era uma Irmandade difícil de dialogar e as acomodações eram muito precárias. Foram tentadas outras soluções, mas sem êxito, o problema era difícil. De um lado não queríamos assumir paróquias para não ficar impedidos de atender ao nosso ministério específico no meio dos padres; de outro, sem paroquias ficávamos sempre sem a independência necessária para desenvolver o nosso ministério…
Depois de três anos de procura infrutífera para chegar a uma solução, decidi tentar no Rio de Janeiro, dizendo a Padre André: “Você continua procurando aqui e eu procuro lá. Quem primeiro encontrar chamará o outro”.
No Rio de Janeiro
No Rio conhecia o P.Zago Guerino, carlista, então pároco de S. Cecília, em Botafogo. Ele me apresentou na Cúria e aos padres da Região Sul. Pouco depois tomou posse da Arquidiocese o Card. Eugénio Sales, ao qual me apresentei e se mostrou muito interessado a um trabalho entre o clero. Encarregou-me, pouco depois, de assumir uma sala de atendimento sacerdotal na Catedral.
Pouco depois fui convidado pelo pároco de S. João Batista de Botafogo, Mons. Arlindo Tiesen a passar na sua paróquia. Ele costumava hospedar padres do Nordeste que vinham ao Rio: sua casa paroquial era um ambiente bem brasileiro e oferecia ocasião de avizinhar muitos sacerdotes. Lá me hospedei por três anos, ajudando a cura pastoral, com liberdade de visitar padres, participar de reuniões, pregar retiros.
Em seguida, fui encarregado de assumir a cura pastoral da parte mais pobre da paróquia, a favela de S. Marta: um amontoado de três mil barracos pilhados nas costas do Corcovado. E passei a morar numa instituição assistencial caritativa, colocada ao pé da favela. Nela funcionava uma creche, um posto de saúde, foi colocada uma escola noturna e outros serviços. Toda tarde subia no morro, visitando famílias, armado de um pequeno projetor de slides; lá se reuniam grupos de crianças e vizinhos e dava, através da projeção, uma instrução religiosa, intercalada de cantos e orações. Foi possível reunir um grupo de catequistas e organizar uma boa catequese.
No entanto, em 1975 P. André voltava para a Itália para um curso de moral em Roma. Senti-me mais sozinho ainda, mas me empolgava o trabalho na favela. Um dia Dom Aloísio, Secretário da CNBB, me observou: “O Senhor está fazendo um bom trabalho aqui; mas não tem futuro. Quando o Senhor morrer, tudo acaba. Deve colocar-se numa situação, não somente de dar, mas também de receber: receber vocações para a sua Congregação, para que possa continuar”. Convidava-me visitar sua diocese de S. Maria e oferecia uma paróquia rica de vocações.
Fui até lá com um amigo; gostei; mas… Dois dias de viagem para ir até lá: sozinho no interior do Rio Grande do Sul; qual colega da Itália teria vindo ajudar?
Decidi esperar na oração uma oportunidade melhor.
E veio algum tempo depois. No fim de 1977, o Bispo de Marilia, D. Daniel Tomasella, foi em Trento visitar os colegas capuchinhos e passou na nossa casa. Tinha conhecido Pe. André e queria convidá-lo na sua diocese. Pe. Mário, então Superior Geral, respondeu-lhe que Pe. André por enquanto não voltava para o Brasil, mas que no Rio estava Pe. Pio, talvez desejoso de mudar. Podia convidá-lo.
Poucas semanas depois recebia uma carta do Bispo de Marília, convidando-me a assumir uma paróquia na cidade. “Marília? Nunca ouvi este nome!” Procurei num mapa a cidade; “Distante de S. Paulo como o Rio de Janeiro”, constatei: deve ter pouco mais de cem mil habitantes; vamos lá ver!”
Vim, olhei, gostei. Dom Daniel tinha pressa para substituir o pároco de
- Sebastião. No Rio tinha acabado o ano de catecismo com uma bela turma de Primeiras Comunhões. Os padres Jesuítas do Ibrades se ofereceram continuar o serviço pastoral e os do colégio Santo Inácio o serviço social. O Cardeal Eugênio Sales, embora lamentando a saída do Rio, reconhecia que a mudança podia ajudar melhor o futuro da Congregação.
Em Marília
No domingo 29 de janeiro de 1978 fui solenemente empossado da paróquia de S. Sebastião. E pensei logo: “Aqui vou plantar raízes. Não vou morar em casas de outros não: vou comprar terrenos e construir casa própria; não vou construir capelas; vou construir Igrejas!”
O trabalho paroquial me empolgava: catequistas, coordenadores, casais, jovens, visita às famílias, organização de grupos….
Seis meses depois recebia a visita de Pe. Mário. Chegou quinta-feira de manhã cedo. Eu tinha sido operado de hérnia na Santa Casa na secunda feira e voltado para casa quarta à noite: “Esperamos que amanhã não venha ninguém antes da cozinheira!”, pensava… As seis horas tocou a campainha…”Mesmo hoje, nesta hora!” Me arrastei até à porta, apoiando-me a uma cadeira e segurando com uma mão a ferida da barriga. “Quem é?” “Oh Pio, sono io!” “Meu Deus!” Segundo os meus cálculos devia chegar alguns dias mais tarde. Com esforço consegui abrir a porta: “Desculpe se não te ajudo a carregar as malas; acabo de sair do hospital!” Ficou meio sem jeito. Nem deu para dar aquele abraço que merecia!
E continuei: “Entre por aqui, abra aquela porta, veja a sua cama…lá está o banheiro…venha por aqui na cozinha”. E continuando a indicar as
As coisas, ele se virou, tomou café, colocou em ordem suas coisas, fez até amizade como os dois cachorros que tinha me deixado padre Bento. depois disse: “eu vou para o quarto, venha lá que conversamos!”. ele se sentou na cadeira ao lado e foi aquele: “conta-me que te conto!”
Dois dias depois, já dava para sair de carro. Ele guiava e eu dava as indicações. Quis visitar a paróquia toda, os limites, as capelas, os terrenos já comprados ou em tratativas, as associações, os grupos, o movimento dominical… E depois a cidade. Pegou mapas, fotografias, desenhos. Pedi que logo Pe. André. Mas, respondeu que não estava ainda em forma. Vamos esperar o Capítulo Geral e lá decidiremos tudo.” “Está bem, respondi: estou sozinho há oito anos, posso esperar mais dois!”
No ano seguinte, veio Padre Franco, então Vigário Geral; notou os progressos: já estava com a capela de S.Judas funcionando e a inserção no clero era boa. Na diocese já fora instalado o seminário filosófico regional e Dom Daniel encorajava a vinda de outros padres.
Assim em julho de 1980 o Capítulo Geral não teve dúvida em aprovar uma retomada da missão no Brasil. Dois padres se ofereceram logo: Pe. Angelo, que sempre tinha desejado a missão, e Pe.Mário, agora livre do cargo de Superior Geral. Passaram-se outros sete meses de preparativos, despedidas. Finalmente na manhã do dia 12 de fevereiro de 1981 chegaram ao aeroporto de S.Paulo, acolhidos por mim e no dia seguinte chegaram a Marília, e assim foi o início da nossa primeira comunidade.
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Por Padre Pio Milpacher, CJS.
Congregação de Jesus Sacerdote
Fonte: Revista Voz Amiga