Mudança de época – tempo de crise

a). O que caracteriza a crise do nosso tempo?

É difícil responder esta questão inicial, pois a crise hoje assumiu uma condição civilizatória. Vivemos aquilo que o Papa Francisco repetida vezes tratou no seu pontificado: a mudança epocal que atinge a humanidade toda. Mais do que uma época de mudanças, vivemos hoje uma mudança de época que leva a considerar o surgimento de um novo tempo, extraordinário por sua natureza, com luzes e sombras que desafiam os valores e os paradigmas pessoais e comunitários.

A crise provocada pela mudança de época leva à ruptura nas relações pessoais, naquilo que as pessoas sentiram desde sempre como o símbolo vital e essencial das suas tradições culturais: símbolos que dizem respeito à família, às ideias e sistemas, à religião e ao ciclo da vida.

Porque é que um homem deve casar e ter filhos, estudar e construir uma carreira; porque é que deve inventar novas técnicas, construir novas instituições e desenvolver ideias novas – quando dúvida da existência de um amanhã que possa garantir o valor de esforço humano?

Através dos meios de comunicação social as pessoas se confrontam com experiências humanas contraditórias, como por exemplo a tentativa mais elaborada e dispendiosa em salvar a vida de uma única pessoa através de um transplante cardíaco, mas também a impotência do mundo para ajudar, quando milhares de pessoas que morrem de fome; a possibilidade de realizar viagens para outros planetas e, a impotência de terminar com uma guerra insensata neste planeta; as discussões de alto nível sobre os direitos humanos e a moralidade cristã, e a triste realidade dos campos de refugiados que abrigam milhões de pessoas, vítimas da guerra; a capacidade de construir barragens, modificar os cursos de rios e criar novas terras férteis e, ao mesmo tempo a triste ocorrência dos terremotos, inundações e tornados que destroem em questão de minutos o que foi construído por décadas.

A nova geração, hoje, já não é capaz de acreditar em algo que possa ser válido para sempre e em toda parte. Vive hora a hora e cria a sua vida repentinamente. A sua música é uma improvisação, que reúne composições de vários compositores e os transforma em algo tão novo quanto tão passageiros. A sua vida parece-se muitas vezes com uma expressão brincalhona de sentimentos e ideias, que precisam ser comunicadas e correspondidas, mas que não tentam coagir com ninguém.

Não nos é difícil compreender que, nós bispos e presbíteros que vivemos neste mundo também somos vítimas desta realidade desconcertante. O sentimento de impotência diante de uma realidade que nos desconcerta, a insegurança e o medo que nascem de um movimento em contínua mudança, a solidão que nos aprisiona e coloca em risco nossa fidelidade.

Num mundo marcado por uma mudança de época, numa crise convulsiva, nós presbíteros não somos poupados, ao contrário continuamente desafiados.

b). A crise na vida do presbítero

Nossa vida é marcada por sucessivas crises. Elas nos acompanham por toda a vida. No desenrolar da vida elas assumem formas diferentes e uma intensidade sempre surpreendente. Iludem-se os que acreditam que a crise seja própria desta ou daquela idade.

A crise tem um significado especial enquanto marca as diversas travessias que devemos fazer ao longo da vida. Por isso, não podemos considerá-las de forma negativa, mas como possibilidades, e, portanto, extremamente positivas.

– No que diz respeito aos padres jovens o dilema muitas vezes está em aceitar que o ministério vá subtraindo o tesouro da sua juventude. Ele tem dificuldade em se identificar com o seu ministério. Não poucas vezes ele se sente habitado interiormente por duas lógicas, sente-se dividido entre o senso “comum” e o senso evangélico e eclesial. Sua vida pertence aos dois mundos.

A tarefa principal neste período da vida é chegar a ser o que sou: um padre. Identificar-se com a sua vocação e missão. O novo Testamento ignora completamente qualquer divisão entre a vida por um lado e o ministério do outro. Tudo na vida do presbítero há de estar voltado para o seu ministério, ele deve viver coerente com ele ou ao menos positivamente compatível com ele.

Na metade da vida, depois de anos de combate espiritual e empenho pastoral vai se insinuando progressivamente uma nova situação marcada pelo vazio interior, a falta de sonho, a desmotivação existencial, a aridez espiritual, a anemia apostólica. O passado produz decepção, o presente insatisfação e o futuro ceticismo.

São vários os fatores que geram esta crise: a precariedade dos êxitos pastorais, as decepções que vamos acumulando ao longo da vida (pessoas que nos enganam, obras que vão se degenerando, ambições, motivações e condutas inconfessáveis em pessoas e instituições até então admiradas…) vão nos convencendo de que ‘tudo está péssimo’, a própria experiência espiritual, a aridez. A oração produz a fadiga. Pensar em Deus não oferece consolo nenhum.

Podemos dizer que a esta altura da vida o que entra em crise é a esperança. É a crise que nos leva a dizer: “As coisas são como são. O mundo é como é. A Igreja é como é. Eu sou como sou”. Podemos dizer que é a síndrome da Gabriela: “Eu nasci assim, eu vivi assim, eu sou sempre assim…” É a crise de sentido que nos leva a nos perguntar: “Será que vale a pena…? Não será uma ilusão pensar que posso contar com as pessoas e os projetos?”

A tarefa espiritual deste momento tem um nome: “segunda conversão”, ou seja, é momento de estabilizar nossa entrega a Deus. Trata-se de reconhecer que seremos salvos apenas à medida que nos encontrarmos com o Deus real de Jesus. Esse encontro nos faz perceber que nossa vida encontra a paz não no ter, no saber, no poder, no querer próprios ou alheios, mas em Deus. Tal encontro faz com Ele se torne real para nós.

c). A oração carregada de solidão

Nós não podemos negar que vivemos numa sociedade onde a solidão tornou-se uma das chagas humanas mais dolorosas. O fato de termos sido educados num tempo em que a competição e a rivalidade invadiram constantemente nossas existências, torna mais acentuado o nosso isolamento, criando uma ansiedade excessiva e um desejo intenso por experimentar a unidade e a comunhão.

Vivemos cercados por pessoas que querem libertar-se da solidão. Entretando, a solidão surge também como uma fresta na superfície das nossas vidas como uma fonte inesgotável de beleza e de autocompreensão.

Por incrível que pareça nossa vida enquanto cristãos não afasta de nós a solidão, mas ao contrário protege-a e a acaricia como um dom precioso. Assim, a percepção da solidão pode ser um dom que devemos proteger e guardar, porque a nossa solidão nos revela um vazio interior que pode ser destrutivo quando mal compreendido, mas repleto de promessas para quem for capaz de tolerar a sua dor.

“Quando somos impacientes, quando desejamos desistir cedo demais da nossa solidão e tentamos ultrapassar a separação e a sensação do inacabado que sentimos, relacionamo-nos facilmente com o nosso mundo humano movidos por expectativas devastadoras. Ignoramos o que já sabemos com um conhecimento intuitivo e profundamente instalado – que nenhum amor ou amizade, nenhum abraço íntimo ou beijo terno, nenhuma comunidade, nenhuma fraternidade ou coletividade, nenhum homem ou mulher poderia jamais satisfazer o nosso desejo de sermos libertos da nossa condição solitária. Esta verdade é de tal modo desconcertante e penosa que estamos mais rapidamente dispostos a entregarmo-nos às nossas fantasias do que a encarar a verdade da nossa existência. Assim, continuamos à espera de um dia encontrar o homem que compreenda realmente as nossas experiências, a mulher que traga a paz à nossa vida insatisfeita, o emprego onde possamos realizar o nosso potencial, o livro que irá explicar tudo, e o lugar onde nos sintamos realmente em casa. Tais falsas esperanças levam-nos a fazer exigências esgotantes e preparam-nos para a hostilidade amarga e perigosa, quando começamos a perceber que nada nem ninguém é capaz de satisfazer inteiramente as nossas expectativas de absoluto” (O curador ferido, Henri Nowen, Paulinas, Portugal, p. 103).

A oração do presbítero tem que partir deste pressuposto, de que deve nascer da coragem de confrontar-se com a sua solidão  para preenche-la com uma Presença que seja ao mesmo tempo possível de satisfazer sua necessidade de comunhão com Deus e com o mundo que o cerca, e capaz de um amor ainda maior.

As vezes somos tentados a viver nosso ministério de forma nervosa, vítima de um ativismo desenfreado; quando na verdade a melhor atitude é aquela de manter certa distância do turbilhão que nos cerca para não ser absorvido pelo mais urgente e mais imediato, para trazer à tona a verdadeira beleza de cada pessoa e do seu mundo, que é sempre diferente, sempre fascinante e sempre novo.

Como presbíteros somos chamados a tornar visível nos acontecimentos do dia a dia o fato de que por trás da cortina sórdida que nos envolve aquela realidade maior que deve ser vista: a face daquele que cuja semelhança todos nós trazemos. Nesta perspectiva a solidão torna-se um recurso valioso, uma fonte capaz de abastecer-nos e preservar-nos diante de um mundo que se desfaz, como falávamos no início desta nossa reflexão.

O grande exemplo é sempre o de Jesus cuja vida foi uma vida de presença solitária e solidária. Jesus embora estivesse muitas envolvido pela multidão, e cercado pelos discípulos não hesita em afastar-se, para manter distância e assim poder oferecer sua presença de forma ainda mais eficaz.

Somente tornando-se um contemplativo o presbítero pode se tornar mais criativo e solidário, pode tornar-se revolucionário no verdadeiro sentido da palavra. Porque, ao experimentar tudo o que vê, ouve e toca, através da sua autenticidade evangélica, é capaz de alterar o curso da história e conduzir seu povo para longe da polarização nefasta, e a sua ação tornar-se-á mais eficaz.

É importante compreender que contemplação exige um tempo de solidão, de distanciamento, de escuta mais demorada para a partir daí aguçar o olhar e poder ver com mais exatidão a realidade da própria vida, e a vida dos que o cercam, como do mundo onde está presente.

O presbítero tem que ser capaz de reparar uma pequenina semente de mostarda e a confiança para crer que depois de crescer, esta torna-se a maior planta do horta e transforma-se numa árvore, a ponto das aves do céu virem alojar se nos seus ramos (Mt 13, 31-32).

A solidão obriga a acolher o presente como dom precioso. Por isso ele não é um otimista ingênuo que vive na expectativa de que no futuro seus desejos e sonhos se cumpram, nem fica repetindo constantemente o que o passado lhe ensinou; mas, ao contrário, é capaz de viver com convicção inabalável de que agora vé  de maneira difusa o que um dia haverá de contemplar face a face.

A afirmação de Rahner de que o cristão do nosso século ou será um místico ou não será cristão é com certeza a profecia mais autêntica do que podemos pensar. A mística aqui é lida como experiência do Mistério que ultrapassa nosso campo de visão e que nos permite ver o invisível.

Tudo isso só será possível se formos homens de oração, homens que precisam rezar, homens que rezam a todo momento.

Um homem de oração é em última análise alguém que é capaz de reconhecer nos outros a face de Cristo e torna visível o que está escondido, torna palpável o que é intangível. É alguém capaz de articular o trabalho de Deus em si próprio, e por isso pode conduzir outros para longe da confusão para a iluminação, através da compaixão pode conduzir as pessoas para fora de círculos fechados dos seus cubículos, para o mundo mais vasto da humanidade.

d). A oração do presbítero

Convenhamos que para nós a oração nem é sempre fácil. Não é fácil pelo acúmulo de atividades e compromissos em nossos dias, mas também porque confessemos que nós desistimos de rezar. Talvez para nós a oração tornou-se um momento em que nós analisamos muito a nós mesmos, ficando patentes as incoerências de nossas vidas, acabando por machucar ainda mais nossa moral do que nos fortalecer para a luta de cada dia.

Para muitos de nós parece difícil reservar um tempo para ela. Nossas atividades começam muito cedo… ou muito tarde para que tenhamos um tempo para a oração. Se não há um tempo prefixado e respeitado, a oração feita aos trancos e barrancos será o “parente pobre” de cada dia.

Além destes aspectos práticos, um problema que carregamos é a falta de articulação entre a teologia aprendida, a ação pastoral e a experiência pastoral. A experiência espiritual nem sempre produz em nós o desejo de penetrar ainda mais na teologia. A ação pastoral nem sempre é inspirada pelos critérios da teologia. A ação pastoral nem sempre nos leva a orar e estudar. Esta articulação, em todas as direções, é uma deficiência na vida dos presbíteros. Chegar a esta articulação é uma meta fundamental e garantia de saúde integral para os padres. Quando é conseguida, produz-se uma unidade na vida presbiteral. Não há dicotomias, compartimentos estanques entre a teologia que sabemos, a vida que levamos e a pastoral que realizamos. Essa pericorese, articulação é sumamente saudável.

Nós podemos dizer que como presbíteros temos um estilo próprio de orar. Esse estilo tem cinco características:

a). Oração especialmente unida à Palavra de Deus

Não somos apenas testemunhas da Palavra de Deus, mas portadores autorizados dessa Palavra. Não somos donos seus donos, mas seus servos, por isso somos mais ouvintes do que anunciadores da palavra.

A capacidade de se deixar estremecer pela Palavra de Deus, a sensibilidade para deixar-se afetar pela Palavra são uma potencialidade do carisma que recebemos na ordenação.

Como viver isso concretamente em nossa vida orante?

  1. Criar familiaridade com os textos fundacionais do ministério ordenado no Novo Testamento. É preciso conhecê-los em profundidade, assim como um religioso conhece suas constituições e os textos dos seus fundadores. Será importante aproximar-se por uma exegese rigorosa dos textos que moldam a motivam nosso ministério como por exemplo Mt 10; Lc 10, 1-12; Jo 10, 11-16; Jo 21, 15-19; At 20, 17-38; 2Tim 1, 6-14; 1Pd 5, 1-4.

2. Orar fazendo uma leitura contínua orante com alguns escritos inteiros do NT, como 1 e 2 Coríntios, Cartas Pastorais a Timóteo e Tito.

3. Orar com os textos que se proclamam na Eucaristia diária. Lê-los com atenção acompanhados de um bom comentário bíblico litúrgico.

b). Orar com a Liturgia das horas

São Paulo VI na Instrução “Laudis Canticum” nos apresenta chaves espirituais para viver a Liturgia das Horas. Nela o Papa diz que a LH é o complemento necessário da Eucaristia é a oração que o próprio Cristo reza em nós e por meio de nós. Ela se faz em nome de todo o Povo de Deus, como meio de santificar o nosso dia, e fonte de piedade e alimento da oração pessoal.

c). Orar nas celebrações litúrgicas

Nas celebrações litúrgicas ao mesmo tempo que somos sinal da presença de Cristo, somos porta vozes da comunidade. Há como que uma mudança contínua de registro da celebração, sobretudo eucarística: falamos em nome da comunidade e, logo falamos em nome de Cristo e vice-versa. É importante considerar que há um comportamento que tem uma face externa, visível e, uma face interna, invisível. A faze externa é o comportamento; a interna é a vivência. Assumir o gesto de Jesus significa não apenas assegurar a face externa, comportamental, mas também aduzir a face interna, a vivência com a qual jesus realiza esse gesto. Para isso será importante:

  1. A atenção não apenas às palavras, mas também aos gestos. Não podemos viver os gestos mecanicamente.

2. Orar com o povo vivendo o nós: o presbítero não só representa Cristo, mas a comunidade também.

3. Viver no compasso da liturgia as grandes atitudes cristãs: a adoração, a ação de graças, a súplica confiada, a confissão humilde, a oferta de nossa vida, a confiança absoluta no Senhor, a adesão a Ele.

4. Viver no ritmo da liturgia as atitudes espirituais próprias de cada tempo litúrgico.

d). Leitura crente da própria vida

A leitura crente da própria vida deveria ocupar um lugar na hora de repassar nossa jornada, o que deve ser feito de modo orante, sistemático e repousado. Trata-se do velho exame de consciência. Um momento de fazer uma leitura cristã de tudo o que vivemos no dia. Dedicar alguns minutos para ver a passagem de Deus pela nossa vida e na vida dos nossos; para rezar um salmo ou um texto que nos “tocou” na oração da manhã, as notícias da imprensa que escutamos e que nos produziram um certo impacto, as leituras que fizemos, as conversas que tivemos, as reuniões que celebramos, as atividades que desenvolvemos, os contratempos que padecemos, as alegrias que nos refrescaram.

A releitura crente da própria vida é um espaço privilegiado para o discernimento. Mais do que um momento de introspecção, deve evocar todo o vivido, para descobrir nessa trama o amor e o chamado de Deus, e descobrir a qualidade humana e evangélica de nossas reações.

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Dom Milton Kenan Júnior

Bispo de Barretos